segunda-feira, 17 de junho de 2013

A vaia cordial

"Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade: daremos ao mundo o 'homem cordial'."
Sérgio Buarque de Hollanda
Em nota a esta frase, extraída de "Raízes do Brasil", o autor presta o devido reconhecimento ao criador da expressão "homem cordial" como tendo sido o escritor Ribeiro Couto, meio século antes. E já adverte a respeito de interpretações errôneas da expressão, que não sugere um "homem polido" ou educado, ou cheio de mesuras. "Cordial" vem de "coração". Sim, somos um povo hospitaleiro, generoso, que não consegue dizer diretamente um "não", que se despede dizendo "depois te ligo!". Mas, adverte Sérgio Buarque, "seria engano pressupor que estas possam significar boas maneiras, civilidade. São antes de tudo expressões de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante." Ressalta que um povo realmente polido, como o japonês, usa a polidez como defesa ante a uma sociedade com preceitos rígidos e naturalmente opressores. A lhaneza no trato, típica do japonês, equivaleria a "um disfarce, que permitirá a cada qual preservar intatas sua sensibilidade e suas emoções." Assim, o indivíduo conseguiria manter sua "supremacia ante o social". 
Ele continua, afirmando que "nenhum povo está tão distante desta noção ritualista da vida que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez." Para o "homem cordial", viver em sociedade significa fugir da apavorante responsabilidade de ter que se haver consigo mesmo, com suas obrigações, limitações, frustrações e outros "ões". Seria uma forma de nos lançarmos aos outros, para enfim nos reduzirmos, enquanto indivíduos, à nossa parcela "social, periférica, que - no brasileiro - tende a ser a que mais importa."
Eis um traço fundamental de nosso povo. Um povo que desconhece qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma ética de fundo emotivo - até quando o que menos cabe seja a emoção. São abundantes os relatos de mercadores antigos que percebiam nos negociantes brasileiros a necessidade de fazer amigos e não clientes fiéis. O grau de confiança nas transações adviria do grau de amizade entre as partes ("confie em mim, sou seu amigo") e não de um pacto moral.
Fatalmente, estas características iriam redundar em aspectos que tanto nos dizem respeito. Temos horror ao distanciamento individual. Horror à qualquer liturgia, a começar da religiosa. Esta é a terra dos cultos sem obrigações, sem reflexões intimistas, das missas aeróbicas, das manifestações religiosas que dispensam o fiel de "todo esforço, toda diligência, toda tirania sobre si mesmo."  O afrouxamento, a humanização, a democratização dos ritos religiosos, mais exuberantes na forma que no conteúdo, "corrompeu pela base nosso sentimento religioso." Nem vamos tão longe assim: tente explicar a um italiano o que é ser um católico não-praticante.
Um povo que só aceita de bom grado "as disciplinas ditadas pela simpatia e pela concórdia" não toma fundo conhecimento de nenhuma instituição mais formalizada de sociedade, a começar pela família. Repare nas escalações das outras seleções: os jogadores ostentam seus nomes de família. Raramente isso não acontece. Já no nosso time, isso não ocorre. Sei lá, tirando o Hernanes, é tudo prenome ou apelido mesmo. Já imaginaram um "Hulk" em outra seleção? Nossos maiores ídolos no futebol respondem por seus apelidos - Pelé, Garrincha, Zico - ou por diminutivos, como os Ronaldinhos. Sérgio Buarque já apontava para estes tópicos em seu texto. E a subversão da família leva fatalmente à subversão do Estado, por vezes confundido com a própria extensão do lar. O autor é claro sobre isso: "O Estado não é uma ampliação do círculo familiar, e, ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo." E sai-se com Sófocles para mostrar esta incompatibilidade:
"E todo aquele que, acima da pátria, coloca seu amigo, eu o terei como nulo."
Alguns milhares de pessoas xingaram Dilma Roussef na abertura da Copa das Confederações. Trata-se de uma platéia ainda pouco acostumada a lugares marcados em estádio. Estavam sim, acostumados a guardar lugares para os amigos. Estão acostumados a comprar de DVD´s piratas, a cartas de motorista, e principalmente a dizer que fazem tudo isso por culpa da crônica falta de fiscalização de governos que eles mesmo elegeram.
Nós não sabemos o que é "fair play", monsieur Blatter. Nós cavamos pênalti e achamos que ganhar roubado é mais gostoso. Xingamos a presidente da mesma forma que mostramos a língua para nossos pais. Estávamos protegidos pela turba, pela massa, pela sociedade, pela pouca noção de nós mesmos enquanto indivíduos. Não vaiamos a alta da inflação, a corrupção, o caos na saúde, a educação vergonhosa. Vaiamos a liturgia, o ritual, o respeito às instituições - porque a gente acha isso muito, muito divertido e libertador.

Xingamos a presidente porque somos cordiais.