quinta-feira, 2 de julho de 2015

"Where problems melt like lemon drops"

"Um comunista é aquele que leu Marx. Um conservador é aquele que entendeu."Ronald Reagan



A reação à decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos em relação à união estável de gays tem a ver com a reação às votações da Câmara dos Deputados para a redução da maioridade penal. Ambas mostram nosso carnavalismo, nosso pendão a discutir política com o fígado e não com o cérebro, o que nos leva a odiar o fato de discordarem de nós. Tal postura estabelece ainda o padrão de açodamento que permeia os debates, onde já começamos com uma opinião formada e com ela vamos até o fim, sem entender completamente nem matizar a questão.

Examinemos a decisão da Suprema Corte. Leiam este trecho da argumentação do juiz Anthony Kennedy, que votou favoravelmente à união estável dos gays:

"Nenhuma união é mais profunda do que o casamento, porque ele incorpora os mais altos ideais do amor, da devoção, do sacrifício e da família. Ao formalizar uma união conjugal, duas pessoas se tornam algo maior do que eram antes. Como alguns dos demandantes demonstraram nesse caso, o casamento incorpora um amor que pode perdurar mesmo após a morte. Seria um mau entendimento, para esses homens e mulheres, dizer que eles desrespeitam a ideia do casamento. Seu pleito é o de que eles respeitam o casamento e o respeitam tão profundamente que procuram encontrar satisfação para si mesmos. A esperança é a de que não sejam condenados a viver em solidão, excluídos de uma das mais antigas instituições da civilização. Eles pedem por dignidade igual aos olhos da lei. A Constituição garante a eles esse direito."

Uma bela e definitiva argumentação, que sancionou o voto de Minerva do juiz Kennedy e resolveu a questão por 5 votos a 4 (foi apertado o negócio por lá). Percebam que a firmeza do argumento não impede a sua leveza. Ele precisou falar em onda conservadora? Mandou algum pastor procurar rôla? Falou em avanço ou retrocesso?
Ele simplesmente fez o que é pago para fazer e cortejou a questão à luz da Constituição norte-americana. Alegou que os estados (13 dos 50) que proibiam a união estável dos gays infringiam a décima-quarta emenda da Constituição, onde se lê que todos são iguais perante a lei. Esta emenda, aliás, foi aprovada para dar sustentação jurídica à abolição da escravatura no EUA - que aliás foi promulgada via outra emenda constitucional, a décima-terceira. As duas emendas datam de 1868. Não resisto e colo aqui o trecho decisivo da 14a emenda:

"Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos e sujeitas a sua jurisdição são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde tiver residência. Nenhum Estado poderá fazer ou executar leis restringindo os privilégios ou as imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos, nem poderá privar qualquer pessoa de sua vida, liberdade ou bens sem o devido processo legal, ou negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição igual proteção das leis”.

O juiz Kennedy, na prática, se limitou a asseverar que os estados que ainda proibiam a união estável não poderiam mais proibi-la, pois isso feria a Constituição do país. Algo a se comemorar sim, inclusive com carinha de arco-íris. Mas, se me permitem, em meio à algazarra colorida, perdemos a chance de olhar pro nosso quintal.

O Brasil aprova a união estável de gays desde 2013. Beleza. Foi decisão do Supremo Tribunal Federal, nossa Suprema Corte. Mas foi uma decisão, digamos, brasileiríssima. Ora, vimos lá em cima que o douto juiz Kennedy alegou a emenda que diz que todos são iguais perante à lei. Na nossa Constituição temos o artigo 5o, que diz a mesma coisa. O problema é que na mesma Constituição há o artigo 226. Ei-lo:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

Viram o parágrafo 3o? Pois é. A nossa Constituição só reconhece a união estável entre o homem e a mulher. Tá lá escrito. Danou-se. Para que se libere o casamento gay no Brasil, este artigo tem que ser mudado. E só quem pode mudar um artigo da Constituição é o Congresso. O STF quando aprovou a questão resolveu ignorar tudo isso e tomou para si o poder de legislar, redundando num pastiche jurídico saído da casa que tem como dever resguardar exatamente a Constituição. Por mais justa que seja a causa, a sustentação legal da liberação do casamento gay da forma que foi feita é zero. De maneira que discutir união estável dos gays no Brasil sem discutir o artigo 226 é patinar no vazio. Poderia haver uma pressão popular para tanto, mas os movimentos envolvidos acham que é mais eficaz pendurar traveco numa cruz besuntado de molho de tomate.

Falando nisso, estão acontecendo as votações em plenário a fim de mudar outro artigo da Constituição, desta vez o 228. Vamos a ele:

Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.

Ocorre que por vários argumentos, inclusive por pressão popular, apareceu a questão de se reduzir para dezesseis a idade onde o cidadão começa a estar sujeito às sanções do Código Penal. Como se trata de alterar artigo constitucional, o processo é chatinho - e tem mesmo que ser. Para começar, a aprovação da mudança não é por maioria simples, e sim por 60% dos votos. No caso da Câmara dos Deputados seriam 308 votos. Outra coisa é que antes da votação em plenário, existe a necessidade de se submeter o texto da proposta a uma comissão especial. Essa comissão pode mudar o texto original como achar que deve e então, após as mudanças, aprova um substitutivo. Para votação em plenário, vai inicialmente este substitutivo. Caso ele seja reprovado - como aliás foi terça na primeira votação - a questão não se encerra, pois o texto original volta para ser discutido no plenário. O plenário então muda o texto original como acha que deve e tem-se então um novo substitutivo. Foi este substitutivo, o aprovado na segunda votação. Logo, a diminuição da maioridade penal que "perdeu" na primeira votação não era a mesma que "ganhou" na segunda. Resumidamente, pelo texto provisoriamente aprovado, os maiores de 16 que cometerem crimes hediondos, homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte vão ser punidos, mas não como gente grande. Ficaram de fora deste substitutivo o tráfico de drogas - onde realmente se vê a cooptação dos menores em situação de vulnerabilidade - e o roubo com agravante. 

Deu para entender? Pois é. Jean Wyllis não entendeu e já quer ir ao Supremo. Mal sabe ele que o regimento manda ter outra votação num intervalo de 05 sessões. Caso seja aprovado de novo, vai ao Senado e começa tudo outra vez. Se for aprovado em todos os pleitos no plenário do Senado (sei não, viu...) só aí o artigo constitucional será alterado. Até lá serão mais umas três ou quatro votações, e como a gente não quer discutir mas sim fazer carnaval, lá pela quarta votação estaremos nos mandando um "chuuupaaa" por outra razão qualquer, e irão fazer com a questão o que bem entenderem.

As instituições deste país só serão mais fortes se forem respeitados os ritos regimentais que as regulam. Um conservador que nem eu acha que a democracia e as instituições estão acima do que eu penso. Se eu tiver que "perder" a questão, que seja dentro dos trâmites previstos e regiamente cumpridos. Assim eu nunca vou me sentir completamente derrotado, uma vez que ganhou a democracia e por conseguinte o país. Mas só vale se for nos conformes. Berrar nas galerias um "vai morrer", pintar os seios de guache, me chamar de fascista (o "coxinha" eu confesso achar fofo) são atitudes totalitárias.

Nossos problemas são complexos, somos um país em construção, e não um lugar além do arco-íris onde os problemas se dissolvem como balas de limão. Mas nem por isso eles precisam ser resolvidos na marra. Revoluções só funcionam para seus poucos líderes.

Tem muito bom-moço que acha que sua causa é mais nobre que as outras e em nome disso pode atropelar a letra da lei, o decoro, o respeito mútuo e o contraditório. Um artista plástico, vegetariano chamado Adolf Hitler achava isso. Um jovem médico idealista chamado Che Guevara também. Ambos leram Marx...