quinta-feira, 23 de maio de 2013

É proibido permitir

"O segredo de ser chato é dizer tudo."
Voltaire
 
 
E como eu estou mesmo por conta de aporrinhar, vai aí mais outra citação. Essa no corpo do texto mesmo, até porque não dá para tirar nada desta estrofe de Zé Ramalho:
 
"Já que tudo depende de boa vontade, é de caridade que eu quero falar. Daquela esmola na cuia tremendo: ou mato, ou me rendo, é lei natural. Num muro de cal espirrado de sangue, de lama, de mangue, de rouge e batom. O tom da conversa que ouço me criva de setas, de facas, de favos de mel. É a peleja do diabo com o dono do céu."
 
O debate, seja lá de que tema for, anda pobre. Na falta de argumentos, sobram sentimentos. Quando menos se espera lá estão dois lados da questão, não "divergentes" mas "inimigos". Vira um Fla x Flu, com palavras de ordem, insultos, escárnios e a questão a ser discutida vai ficando em segundo plano. Este ponto foi bem lembrado por Nelson Motta num artigo.
 
Quando eu era residente de Psiquiatria, todos os professores, sem exceção, pregavam prudência no debate sobre a questão das drogas, notadamente no que se referia à liberação. Chegavam a dizer que esta discussão não era só nossa, que mais gente opinaria, e que, mesmo que fôssemos autoridades acadêmicas, a questão era muito complexa para que tivéssemos a última palavra. Então, se quiséssemos mesmo entrar neste debate, que fosse mais como mediadores. Eram tempos em que se admitiam matizes de cinza e não apenas preto ou branco.
 
Assisti Ronaldo Laranjeira no Roda Viva. Pelo que disseram ele faz parte da turma dos proibicionistas, que por sua vez pregam a proibição da liberação das drogas. Os que pregam a liberação da liberação seriam os liberacionistas (não confundir com "liberais" porque esse rótulo soaria como grande ofensa). A bancada de entrevistadores de Laranjeira, pelo que vi, era composta de luminares do liberacionismo, com a exceção de Mara Menezes, coordenadora do Amor Exigente. Pode ser a linha editorial do programa, mas o quase linchamento do professor da Escola Paulista de Medicina ilustra bem o tom que este debate infelizmente assumiu. Uma proposta feita por Reinaldo Azevedo seria fazerem um outro Roda Vida, desta vez com um liberacionista sendo entrevistado por proibicionistas (ele tava brincando, gente).
 
Bem, as propostas para abordagem dos dependentes químicos aí na praça têm vários méritos. A parte mais polêmica, no caso da proposta do Estado de São Paulo seria a tal "Bolsa Crack" - um cartão a ser dado para a família a fim de possibilitar o tratamento do dependente. Chama "Projeto Recomeço" e é sim, uma idéia interessante desde que sirva apenas e tão somente para um recomeço - sob o risco de se tornar um novo Bolsa Família, cujos recursos tem gente que recebe há uns dez anos mas dizem que ainda não deu para recomeçar... Mas não é dessa caridade que eu quero falar.
 
Olha só: usar drogas faz mal. Tem umas que fazem mais mal que outras, ok. Também temos o álcool e o tabaco liberados, com grande custo de vidas. Certo. Mas a cruzada para liberação das drogas soa como bandeira de utopia. Algo já datado, de um tempo em que se gritava "é proibido proibir". O que temos na dura realidade é uma total falta de condições práticas para a liberação das drogas. A propósito, o termo "descriminalização" nunca coube. Neste país nem assassino que põe fogo por conta de 30 reais vai preso, que dirá usuário de drogas. A Justiça Terapêutica, a Internação Compulsória e mesmo a Involuntária já fazem parte de nosso ordenamento jurídico faz tempo. Ademais, é consenso que a patrulha policial coíbe, sim, o uso. Mas vamos colocar a camisa de um destes dois times, e portanto debater que nem torcedor. Eu me rendo:

 
O argumento que o tráfico de drogas existe só porque elas são proibidas já dá preguiça pela presença deste "só". Há tráfico de DVD´s, de cigarros de nicotina, de uísque, de notebooks, e pelo que consta são produtos liberados. A violência do tráfico de drogas é proporcional ao lucro que ele dá. Assim, os traficantes do Morro do Borel disputam mercado com os do Complexo do Alemão a fim de ganharem mais dinheiro. O melhor jeito de fazer isso, na concepção deles, é dando tiro. Fossem as drogas liberadas, os produtores devidamente regulamentados competiriam entre si da mesma maneira com que fazem hoje os produtores de cigarros de nicotina, portanto sem tiro, é isso? E quem seriam estes produtores? A Souza Cruz? A Philip Morris? Vale dizer que são multinacionais, e teriam que se haver em outras plagas com a pecha de fabricarem drogas que no Brasil são lícitas, mas proibidas pelo resto do mundo. Já é fato consumado que a Brahma, quando encampou a Antarctica, conseguiu calar a grita da Kaiser ao fomentar no Estados Unidos que a Coca Cola fabricava cerveja no Brasil. A alternativa talvez fosse uma estatal, que poderia se chamar "Narcobrás" (essa eu ouvi do professor Artur Guerra), e pelo que se projeta iria ter um grande lucro. 
Quanto aos traficantes, imagina-se que, uma vez as drogas liberadas, ficariam sem função. Bem, quanto se espera que a Narcobrás cobre por unidade de droga? A julgar pelos impostos imbutidos nas drogas atualmente lícitas, ia sair meio caro. Basta que a turma do Alemão cobre bem mais barato (escala para isso eles têm) e lá vamos nós de novo. Ainda assim, se a Narcobrás colocasse um preço, digamos competitivo, a turma do tráfico iria fazer o quê? Prestar consultoria? Pegar busão com a carteira de trabalho no bolso para arrumar trampo de gente de bem? Os contraventores do tráfico, senhores, não escolheram o tráfico. Escolheram a contravenção. Eu sei lá o que fariam, eu não penso como traficante. Mas eu sei que algo eles fariam. O que os anima a abraçar uma vida de crime é, dentre outras muitas coisas, um Código Penal ridículo.
E os policiais corruptos, que sujam a farda de sangue e de lama? Vão continuar sujando, o que não falta neste país é oportunidade para corrupção. Eu também não sei pensar como um policial corrupto, não sei como fariam.
Diplomaticamente, então, nós estamos prontos para suportar a pressão por sermos o único país do mundo com as drogas liberadas? Tá bom, levaríamos a América do Sul de roldão (a América Latina é meio sem chance, pois o México faz fronteira com um país muito poderoso, que é totalmente contra essa conversa de liberar geral). Mas mesmo em nosso quintal... O que achará a Colômbia, que vem a duras penas expurgando o terrorismo do narcotráfico? O que achará a Argentina, principalmente ao saber da posição do Brasil? Talvez a Bolívia se empolgue...
 
E, para não perder o costume, temos o brasileiríssimo coitadismo travestido de caridade. Já estão falando em cotas de emprego para dependentes em recuperação. Em nome de uma causa pretensamente humanitária, estão nos impondo uma agenda, como uma cuia trêmula. Para os dependentes químicos graves, matar ou morrer é lei natural. Para a maioria disposta apenas a morrer, o Estado deve sim oferecer ajuda, sempre com contrapartidas. Mas a minoria disposta a matar deve ser severamente cerceada nessa disposição. Lei serve pra isso.
 
O assunto é delicado, mas não justifica o tom atual da conversa, com troca de setas e de farpas. É preciso enxergar nuances, tem muita gente morrendo.
 
E só porque propus um tom ameno, deixa dizer uma coisa: eu já faço parte de times que me dão muito trabalho. Sou católico, reacionário, palmeirense. Dos times que participo, o que mais me dá orgulho e razão de viver é o time composto por aquele que o João Miguel chama de "Papai". Esta seleta equipe já tem brigas internas pesadas demais, diárias, de maneira que não me sobra paciência para ingressar em mais nenhuma panelinha. Tudo isso para dizer, com todo respeito, que "proibicionista" é o cacête...
 
 

terça-feira, 14 de maio de 2013

Um breve tratado do cinismo

"Cínico é aquele que ao sentir cheiro de flores começa a procurar pelo velório."
 
H. L. Mencken
 
 
Zapeio pelo CQC e vejo o repórter entrevistando os deputados federais pelos corredores do congresso. Primeiro fala João Paulo Cunha, que aos berros, disse não estar ainda condenado. O repórter admite que caberia ainda recurso (não cabe não)  e João Paulo continua a vociferar que ainda não tinha sido condenado. Paulo Maluf repetiu este mantra milhares de vezes. As circunstâncias o levaram a parar, da mesma forma que levarão João Paulo a parar também. Nenhum dos dois, a rigor, estava mentindo. Estariam se dissessem que eram inocentes, mas não lhes ocorreu estropiar a verdade desta forma. João Paulo está, como Maluf esteve, sendo cínico.

O dicionário Houaiss nos ensina que o verbete "cinismo" sofreu uma "derivação por extensão de sentido", ou seja, de uma Escola Filosófica, que pregava o desapego a tudo, passou também a designar uma "atitude de descaso às convenções sociais e pela moral vigente; imprudência; desfaçatez; descaramento."

Dentre os filósofos cínicos havia como expoente um sujeito chamado Diógenes, que segundo consta, morava num barril. Mas ao contrário do Chaves, esta tinha sido uma escolha do filósofo. Consta ainda que Alexandre, o Grande um dia parou com seu cavalo diante do barril e ordenou que lhe pedisse qualquer coisa, pois era um grande admirador seu. Diógenes respondeu solenemente "Peço-vos que saia da frente do meu sol." Uma resposta cínica, nos dois sentidos.

De alguma forma nós tendemos a perdoar, ou pelo menos a relevar as pessoas cínicas. João Paulo desceu aos infernos, indo de presidente da Câmara a um dos líderes do Mensalão. O cinismo é uma expressão do seu desespero e nem deve fazer parte de sua personalidade. Os cínicos de escol em geral são sutis, são mordazes, são corajosos, são acima de tudo pessoas inteligentes. Não se vê cínicos deste quilate no cenário político atual. Na verdade o cenário atual carece de quilates, mas isso é outra história.

Continuando o programa, o repórter aborda o deputado petista Vicente Cândido e o pergunta sobre se seria bom o PT comandar o Supremo. "Seria". O repórter adverte que de certa forma isso já acontece, pois o PT indicou grande parte dos ministros, de Gilmar Mendes a Luiz Fux, passando pelo famigerado Joaquim Barbosa. A resposta do deputado Vicente Cândido: "Mas eles não seguiram a cartilha." O repórter pergunta se a cartilha seria inocentar petistas, e aí eu já estava enojado demais para lembrar da resposta de Vicente Cândido.

Consigo lembrar que não chegou a ser uma resposta cínica, até porque ele tentou se expressar em jurisdiquês. Mas responder, assim candidamente (sem trocadilho) que o Executivo petista teria que intervir no STF porque os ministros indicados não "cumpriam com a cartilha" é para início de conversa falta de decoro. A noção de totalitarismo dos petistas faz por vezes que eles se dêem a este tipo de descaramento. Nada vai acontecer amanhã, e nem dentro do próprio CQC esta declaração repercutiu - preferiram bater em João Paulo. Vão continuar os Vicentes Cândidos a tentar surrupiar do STF sua autonomia, fundamental a uma República digna deste nome, a fim de que cumpram sua cartilha.

O adjetivo que merece a resposta de Vicente Cândido não remete a nenhuma Escola Filosófica grega. Remete sim, àquele objeto que ficava na coluna lateral, na parte interna dos saudosos Fuscas, entre os bancos da frente e os de trás. Tinha forma de gota e servia para que nele entrelassássemos a mão para melhor suportar os solavancos de um veículo feito para andar no deserto.
Todos devem se lembrar dos vários nomes que o objeto tinha. Nenhum era publicável. Mas todos definiriam com perfeição não apenas a resposta, mas a postura de homem público de Vicente Candido e dessa petralhada parasita que nos assola.