Pois bem. Luís Gama era negro. Viveu na época do Segundo Reinado e, para resumir, foi vendido por seu pai como escravo. Conseguiu a liberdade, alfabetizou-se no final da adolescência e se tornou um dos maiores defensores de outros negros, encontrando caminhos legais de retirá-los da condição de escravos. Vale a pena conferir sua história.
Gama foi até onde sua inteligência, perseverança e talentos permitiram. Usou destas armas para sair de uma condição de vendido pelo pai para a de advogado de respeito. Não precisou se valer de cotas.
Quase dois séculos depois, e o Brasil ainda não aprendeu a lidar com a escravidão. A atuação de Luís Gama só era possível porque fomos criando um arcabouço legal que nos permitiu singularmente abolir a escravidão aos poucos. A Lei Áurea, que tornaria o trabalho de Gama obsoleto, só foi promulgada sete anos após sua morte.
O regime de cotas raciais atesta a culpa que temos, ou que pelo menos deveríamos ter, pela escravidão. Vagas seriam reservadas para os que se declaram negros em universidades e postos de trabalho, e assim estaríamos curando uma chaga histórica.
A primeira distorção seria o que fazer com os estudantes brancos pobres, colegas dos negros nas salas de aula do ensino público. Mas ao que parece, já foi resolvida: foi aprovada a lei que garante 50% das vagas para oriundos de escolas públicas.
O tempo que se gasta pensando em soluções como essa é maior com o gasto em planejamento de melhorias na educação. Mas dizer isso é redundante. Há outros aspectos envolvidos, e um deles foi desnudado com a notícia de que o ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica) e o IME (Instituto Militar de Engenharia) simplesmente não darão bola para nenhum tipo de cota. E o Governo Federal disse que... tudo bem...
Já li que o ITA pode tomar tal postura porque se trata de uma instituição historicamente meritocrata. Uai, e as Universidades Federais não são? Outros justificam que o ITA faz parte da Aeronáutica e não do Ministério da Educação, e a lei alcança apenas os vinculados ao MEC. Ah, tá...
De duas as duas: o Governo acha mesmo que esse troço de cota contribui para baixar o nível dos cursos, e no fundo tem vergonha de ter sancionado a lei, já que sancionou por medo da grita dos patrulheiros.
O que incomoda neste tipo de lei, é a distorção do conceito de justiça. Se "justiça social" fosse algo justo, se chamaria apenas "justiça". Deixar um branco que é mais competente (porque foi melhor preparado) de fora da universidade em detrimento de um negro, e alegar reparação por danos da escravidão não é justiça, é acerto de contas.
Limitar as chances de acesso à faculdade de um jovem cujo pai de classe média perdeu noites de sono para saber como pagaria a escola particular não redime as noites de sono perdidas pelo pai mais pobre por não conseguir pagar escola para o filho.
Dizer que vai levar muito tempo para que a escola pública fique decente, e até lá que se tenha as cotas, equivale a apoiar um julgamento sumário.
Quando alguém já entra com mais chance num vestibular porque se declarou negro, e não porque aproveitou a chance de estudar numa boa escola para se preparar melhor, o que se tem aí não é justiça, é privilégio.
A justiça tem que ser oferecida a todos, sem distinção nem de caráter. Assim como a liberdade aos escravos, como bem lembrou Luís Gama. A justiça não tem que ser simpática, boazinha, politicamente correta, ou, como queiram, "social".
A justiça tem que ser apenas justa.