domingo, 28 de julho de 2013

Pelo menos não queimaram uma Bíblia...

  Não há porque temer uma discussão sobre religião. Este blog discute política, o que para muitos é algo indiscutível, assim como futebol. Mas nenhum dos três é questão de gosto. Gosto é que não se discute, e há um chavão mais preciso que define a questão ao considerar que cada um tem o seu gosto, mas não o reproduziremos aqui a fim de não chocar tanto.
  A visita do Papa Francisco suscitou, como nenhuma outra, manifestações anti-cristãs. Mais que isso, anti-religiosas. Na mesma medida, vimos exemplos de tolerância vindos até de ateus convictos. Pode ser que a tolerância seja um bem mais natural do ser humano, por isso é mais silenciosa. Meio como a respiração, que não faz barulho ao contrário da tosse. Daí que a intolerância, como todo sintoma de doença, pareça mais estridente e forte no começo, mas vai sendo vencida pela saudável e tácita convivência democrática entre discordantes. De maneira que o saldo, ainda que pareça pender para o outro lado, foi positivo. Não a favor necessariamente do catolicismo, mas do respeito pelas convicções alheias.
  Há uma anedota envolvendo o ex-presidente João Figueiredo. Consta que ele, já general, recebeu um militar chinês em visita. Assustou-se com o despojamento da farda do colega, sem medalhas, condecorações, estrelas, enfim, sem nada que ostentasse o alto posto hierárquico daquele senhor. Figueiredo lhe perguntou a razão de tanto desprendimento, já que seria motivo de orgulho e até de justiça vestir uma farda digna de um general. A resposta teria sido "a farda de um general chinês é assim, para ele não se esquecer de que antes de mais nada é um soldado." Francisco, ao pedir um trono de madeira, ao recusar as vestes vermelhas e douradas, ao preferir a comida das freiras à do Copacabana Palace, talvez esteja querendo nos mostrar que antes de mais nada é um padre. Num primeiro momento parece óbvia, mas é uma escolha também política. Tanto é que, a despeito da virulência das manifestações anti-clericais, a pessoa de Bergoglio parece ter sido poupada de maiores ofensas (Ratzinger chegou a ser chamado de nazista quando veio), mas tal fato se deve mais à figura pessoal do Papa que propriamente a uma guinada de nossa sociedade em direção a uma maior tolerância.
  Talvez por chegar num momento em que alguns barulhentos arrebentam agências bancárias em São Paulo para protestar contra o governador do Rio, a visita papal tenha levado em seu bojo os ventos contemporâneos desta Primavera Brasileira. Porém, a "vergonha do Várti" foi muito mais pela desorganização carioca - que poderia se dar em qualquer cidade do país - do que pela Marcha das Vadias. Uma, por assim dizer, manifestante, reproduzir uma cena d' O Exorcista e se empalar com uma cruz causa menos espécie que o lamaçal de Guaratiba.
  O que os imberbes manifestantes vestidos de ninja não compreendem, talvez por imaturos, deseducados, prepotentes ou tudo isso junto, é que o carnaval deprimente que estão produzindo não demoverá os católicos de sua crença - tampouco a fortalecerá. Nem demoverão os políticos de suas práticas, mas neste caso as fortalecerão. Suas excelências já perceberam que se trata de mais espuma que maré. E vão passear com cachorrinhos de helicóptero, colocar multidões num lugar que até ontem era um mangue, votar pelo fim do foro privilegiado para poderem ser julgados em seus currais eleitorais, submeter peregrinos do mundo todo a um assalto a cada dez minutos, enfiar o Papa num corredor de ônibus, fazer o PIB equivaler à arrecadação de impostos e tomar medidas marqueteiras para que menos pessoas morram em corredores de hospitais.
  O fato de todas estas mazelas serem recentíssimas e terem ocorrido após o início das manifestações só nos mostra que nossos governantes não são de Marte. Eles apenas são a expressão de um povo raso de idéias, de moral e de costumes.
 

quinta-feira, 18 de julho de 2013

"Mensaleiros na cadeia!"

(Escrito por inspiração das idéias do Dr. Leonardo F. Zimmerman)
 

  Jean Paul Sartre definiu o Maio de 68 na França desta forma numa entrevista dois anos depois: "Ainda estou pensando no que aconteceu, não compreendi muito bem. Não pude entender o que aqueles jovens queriam, então acompanhei como pude. Fui conversar com eles na Sorbonne, mas isso não queria dizer nada." 
  Sartre ia na frente em algumas manifestações e enfrentou a polícia. O general Charles de Gaulle, presidente francês à época, deu ordens para que não prendessem o filósofo. As manifestações uniam estudantes em greve e trabalhadores também em greve. Em uma das maiores passeatas, Daniel Cohen-Bendit, líder estudantil, organizou a distribuição dos manifestantes, e deu o clássico grito "A canalha stalinista vai para o fim do cortejo!" Foi o estopim da briga com o Partido Comunista Francês, que se retirou dos protestos, fazendo com que aquilo naturalmente evoluísse para um movimento apartidário. Ao contrário de Sartre, o presidente de Gaulle entendeu a mensagem que chegava daquele furdunço. Poderia ter convocado um plebiscito para reformar a política. Preferiu convocar eleições mesmo. Se tivessem que tirá-lo do governo, que fosse pelo voto - estadistas geralmente fazem assim. Depois chamou a Confédération Generále du Travail, a CUT deles, e concedeu aumento aos trabalhadores, terminando com a greve. Um mês depois vencia as eleições, indicando para primeiro ministro o conservador George Pompidou.

 Viajemos no tempo, dez anos antes, para a Suécia (tenham paciência comigo...). Final da Copa do Mundo entre o time da casa e o Brasil. A segunda final de nossa seleção, oito anos depois do Maracanazo, que enterrara nossa auto estima. Antes dos cinco minutos do primeiro tempo, a Suécia abre o placar. Um a zero pros caras. O time brasileiro parou atônito por alguns segundos enquanto o estádio em Estocolmo explodia em vibração. De repente todos pareceram acordar e foram correndo buscar a bola dentro do gol de Gilmar, ainda caído. No meio da correria, Didi fez um gesto brando pedindo a bola. Pegou-a e todos foram correndo para o meio do campo. Menos ele. O "Príncipe Etíope", como o chamava Nelson Rodrigues foi caminhando calmamente de cabeça erguida, conduzindo a bola com a mão espalmada, como se a levasse numa bandeja. Naquela curta caminhada até o círculo central, Didi acalmou a todos e o jogo recomeçou com os ânimos serenados. Vavá empatou três minutos depois e o resto a gente já sabe.

  Nas manifestações no Brasil de Junho último, um cartaz chamou atenção: era envergado por respeitáveis senhores de meia para terceira idade e dizia: "Os jovens de 1968 apoiam os jovens de 2013". Sartre morreu sem ter entendido o maio de 68. Esses aí do cartaz irão no mesmo caminho. E não entenderão o junho de 2013. Mas o cartaz fez sentido. Ambos foram movimentos apartidários, baseados na explosão de hormônios e na necessidade de se apanhar da polícia para justificar a própria existência. O espírito sessentaeoitista impregnou este movimento brasileiro de agora e o pôs a perder. O negócio começou a degringolar quando outro cartaz disse "Não é só pelos 20 centavos", e passou a ser por tudo. E para piorar, no governo central temos uma figura decorativa, que mal articula uma frase, à frente de um ministério mastodôntico e fisiológico. Há quem possa sentir falta de um de Gaulle. Mas falta mesmo faz um Didi.

  A atitude de sair correndo a esmo, chutando a bola pra frente para recomeçar logo o jogo, é o melhor caminho para a derrota. Já há a sensação de que tudo não passou de uma marola, um espasmo que gerou reações igualmente espasmódicas do poder central. Pode ser que fosse uma utopia vencer os suecos na casa deles. Mas só seria possível com organização, foco e uma dose saudável de serenidade em meio ao natural arrojo do esporte. Foi isso que Didi quis passar aos companheiros. É perigoso que surja um dono da bola agora, mas a atitude cabe.

  A birra com os políticos e com a política em geral não produziu um slogan. Movimento popular para dar certo no Brasil, precisa de frase pronta, que nada mais é que a expressão do que motiva as pessoas a estarem nas ruas. Foi assim com os últimos levantes de peso em nossa história recente. "Anistia ampla, geral e irrestrita", "Diretas já" e "Fora Collor". Falta alguém explicar porque em nenhuma cartolina apareceu a frase "Mensaleiros na cadeia".
  O Supremo Tribunal Federal já decidiu pela culpa dos mensaleiros. Estão todos soltos, alguns "trabalhando" no Congresso. A melhor das Reformas Políticas começará quando todos forem presos. Pode ser utopia sim. E utopia é antes de tudo crença. Talvez comecemos a entender esses protestos quando considerarmos que foram movidos justamente pela descrença.
  É legal sair às ruas, aquietar a consciência com a idéia de que se está fazendo história. Mas até para isso é necessário método. Não precisa ser nada complexo não. Em lugar nenhum do mundo houve passeata pelo voto distrital misto. Esse movimento das passeatas de junho minguou porque não fez o simples. Exultou-se o apoteótico, o barulho, a irreverência - noves fora os baderneiros - parou-se as avenidas. Mas acabou na quarta-feira de cinzas. Bradou-se contra a política tradicional e contra tudo que está aí, mas os mensaleiros foram deixados em paz.
  Bastava um slogan, repetido como um mantra. José Dirceu e sua corja na cadeia seria sim didático, revolucionário, um feito para lavar a alma de uma geração. Mas por hora vamos de reforma na saúde, que a reforma política morreu com o natimorto plebiscito.
 
  Falando em reforma da saúde, ocorreu-me outra frase para cartolina: "Muita saúva e pouca saúde, os males do Brasil são." Essa apareceu em "Macunaíma", de Mário de Andrade. Foi publicado em 1928, 40 anos antes do Maio francês. Lembrei disso agora porque minha cachorrinha está latindo mais que carro de som de sindicato. Ela sempre faz isso quando tem muita formiga no quintal.
 


domingo, 7 de julho de 2013

Manual contra açougueiros

  Não, não se trata de um manual para nos defender de vendedores de carne mal-intencionados. Trata-se de precaver a nossa população a respeito de algo que sofreremos dentro de muito pouco tempo: médicos, por assim dizer, formados em Cuba desembarcarão no Brasil aos borbotões, a fim de resolver os problemas de nossa saúde. As entidades médicas reagiram, foram contra a proposta, alegando que a proporção de médicos para cada grupo de brasileiros previamente definido chega a ultrapassar os números sugeridos pelos órgãos internacionais. Disseram que o problema da saúde na verdade está na estrutura, nas condições de trabalho e não na falta de médicos. Alguns setores da imprensa e da população reagiram nos xingando, sem razão, do que sempre xingaram com razão: "financistas", "elitistas", "reservadores de mercado", "cadê o sacerdócio?" perguntavam alguns.
  Escapa ao senso comum que, assim como todo país que se considere civilizado, o Brasil não veta a entrada de médicos. Porém, para que exerçam a profissão, é necessário que se submetam a uma revalidação do diploma obtido em outro país. Não se trata de preconceito com a medicina cubana. Os muitos ganhadores de prêmio Nobel que de lá saíram, os vários centros de tratamento que são referência mundial, os papers que se publicam direto de Havana em inglês - essa língua do imperialismo - e a formação de ponta das mais de vinte escolas de medicina de Cuba, onde os alunos tem franco e ilimitado acesso às bases de dados médicos não conferem, absolutamente, o direito de se esquivar de um exame de revalidação.
  A jogada de marketing foi interessante - imagino que os homens de marketing devam se remoer quando se associa seu ofício à arte de enganar bobos - mas se repete. Augusto Nunes bem lembrou a fixação pelo número de seis mil. Dilma já prometera seis mil creches na campanha eleitoral. Em visita ao Nordeste em maio, prometeu seis mil carros pipa. Agora vem com esses seis mil médicos.
  Dá uma certa preguiça em discorrer sobre as reais intenções acerca da vinda destes colegas. Dizem que podem ser espiões, outros falam que se tratam de treinadores de guerrilha, tem a hipótese que seriam doutrinadores da fé socialista. Realmente seria melhor que tudo isso fosse verdade, pelo menos eles não fariam tão mal à saúde do povo.
  Cuba se nega a passar por qualquer escrutínio, auditoria, ou o que quer que seja. Regimes fechados são assim mesmo. Apóiam-se em frases de efeito, precisam delas. A medicina de Cuba é defendida por dizeres que cabem numa cartolina de protesto, do tipo "80.000 crianças morrem todos os dias por doenças evitáveis, nenhuma delas é cubana." Tem criança brasileira nessa conta. Tem também (uns três ou quatro, mas tem) alguns suequinhos, japonesinhos, norte-americaninhos. Mas, vejam só, NE-NHU-MA criança cubana. Um médico formado nesta cultura totalitária, que escarnece do mundo e esconde as próprias estatísticas, é antes de tudo um propagandista, formado para cuidar da manutenção do regime, não de gente.
  Pode ser que Dilma, no fundo, pretenda importar na verdade uns 120 médicos cubanos. Pois se formos levar em consideração a porcentagem de médicos que de lá vieram e foram aprovados nos exames de revalidação - 2% - é o que sobra dos seis mil. Porque eles terão que fazer a prova, que nem a turma que vem do Canadá, da Índia, da Bolívia, de Marte, do Vietnã do Sul...
  Cuba não é uma democracia especial, é uma ditadura mesmo, sanguinária, que retira do seu cidadão os direitos de ir e vir, de livre se expressar, de chupar um chicabon e de detestar hollywood. O embargo norte-americano e a base de Guantánamo não justificam que os médicos lá formados não possam passar pelo Revalida. Mas passarão.
  Tanto é que o egrégio Centro Acadêmico Adolfo Lutz (CAAL), da Faculdade de Medicina da Unicamp propôs uma reciclagem para que os coleguinhas cubanos possam passar nas provas. Eu já fiz parte dessa instituição e disse naquela época algumas coisas que hoje julgo terem sido bobagens. Mas nenhuma delas foi sob as bênçãos de um ministério. Este Centro Acadêmico já resistiu bravamente a uma ditadura no fim dos anos 60 e agora acena como um cordeirinho ideológico para outra ditadura. Mas deixemos esses meninos. Não são levados a sério nem na Faculdade. E terão que dizer às suas crianças: "Filho, o papai lutou a favor do governo"...
  Até porque não deixa de ser boa a ideia do curso de reciclagem. Eu proporia a publicação de um manual para que a população leiga consiga, assim como nós, reconhecer já da anamnese um mau médico. Aceito sugestões para a confecção do manual, que não servirá para desmascarar um regime que aprendemos a admirar no colégio. Esse capítulo é mais complicado. O manual para açougueiros servirá apenas para defender nossa incauta população destes profissionais que exercerão esta nobre profissão sem que tivessem que prestar contas a ninguém.
  Ah, diriam muitos, mas e os açougueiros brasileiros? Verdade. No governo do PT as faculdades de medicina dobraram no país, formando médicos com qualidade por vezes sub-cubana. Mas essa questão logo será resolvida. Eu me lembro do atual ministro da Saúde bradar em uma assembleia do CAAL - quando o CAAL ainda fazia assembleias - que tal estado de coisas era uma vergonha, que não passavam de fábricas de diplomas, que eram fruto da lógica capitalista, etc, etc, etc...