terça-feira, 26 de abril de 2016

Fora, sua irresponsável!

"Quando morrem mendigos, não se veem cometas no céu; mas o próprio firmamento resplandece anunciando a morte de príncipes."
Fala de Calpúrnia, dirigida a seu marido Julio César, na peça homônima de Shakespeare


  O imperador romano Julio Cesar teve três esposas. A primeira tinha o sugestivo nome de Cornélia e foi trocada por Pompéia, que perdeu em encantos para Calpúrnia. Esta previu a morte do Imperador, conforme atesta a fala acima, retirada da peça. Nelson Rodrigues dizia que "somente os profetas enxergam o óbvio", mas nem o fato de Calpúrnia antever a tragédia pelo brilho do céu fez com que seu ilustre marido enxergasse o pior.
  Mas a mulher de César que nos interessa agora é a segunda, Pompéia. Consta que sua beleza atraía admiradores, a ponto de um deles, chamado Clódio, invadir o palácio real vestido de mulher para chegar perto dela. Foi pego e julgado. César considerou Pompéia inocente, porém a repudiou em particular, proferindo a famosa frase onde asseverava a superior necessidade de sua esposa ostentar sua honestidade, não bastando ser honesta.
  O debate em torno do impeachment tem tamanhos tons de surrealidade que a crônica de sua narrativa não dimensiona. Tome-se por exemplo, a frase "impeachment sem crime de responsabilidade é golpe". É mais ou menos como dizer: "condenar alguém por roubo sem que ele tenha pego escondido para si algo que fosse de outrem é injusto". Se começa surreal, continua surreal: "Dilma não cometeu crime de responsabilidade. Ela é honesta." Ora... será que é tão difícil entender (eu sei que para membros da seita petista é impossível aceitar. Mas aceitar é diferente de entender) que quem comete crime de responsabilidade é um irresponsável, ainda que potencialmente honesto?
  Dilma tomou dinheiro emprestado dos bancos públicos - Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e BNDES - em nome do Tesouro Nacional. Os bancos estatais não podem emprestar dinheiro ao Tesouro Nacional. Está no artigo 36 da Lei de Responsabilidade Fiscal:

Art. 36 da LRF: “É proibida a operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo.”

  Por si só isso já seria crime de responsabilidade. Ocorre que o governo presidido por Dilma atrasou o pagamento ao bancos estatais. Eles então cobraram juros do Tesouro Nacional. Isso pode menos ainda, aí o caldo entorna de vez. Relatórios do Tribunal de Contas da União detectaram que este crime foi cometido várias vezes, em vários momentos, se tornando um costume do governo Dilma. A situação foi ficando de tal monta, que chegou num ponto onde os atrasos começaram a ficar descarados, até porque, se os juros dos empréstimos fossem integralmente pagos, as contas do governo afetariam o superávit primário.
  Grosso modo, o balanço das contas do governo precisou ser maquiado para que o superávit não fosse ameaçado e os títulos da dívida pública do Brasil não perdessem o valor. Esse conjunto de maquiagens foi detectado pelo Tribunal de Contas e foi chamado de "pedaladas fiscais".
  Ficou feio. Os investidores perderam a confiança. Os títulos da dívida do Brasil caíram e com eles uma potente fonte de arrecadação do governo. O país foi rebaixado à qualificação de caloteiro pelas agências internacionais. O dólar explodiu. O preço de vários produtos, muitos produtos, como o pão francês, dependem do preço do dólar. Os preços explodiram. A inflação voltou. Com o dólar alto, a atividade de vários ramos entrou em descendente. Inflação com diminuição da produção, da circulação de dinheiro e mercadorias é recessão. O que leva ao desemprego recorde.
  Você conhece pelo menos meia dúzia de gente que foi de alguma forma afetada pelo desemprego só neste ano. Pais de família que não tem como saldar suas contas. Você mesmo tendo que fazer cortes. Isso tudo fruto não de roubo. Mas de irresponsabilidade de um governo inepto para com o trato da coisa pública.
  Para impedir coisas assim é que existe a lei da Responsabilidade Fiscal. Ela é ancorada na Constituição. Esta mesma Constituição autoriza o processo de impeachment para presidentes que ao pedalarem nas contas condenam o país à recessão.
  Independente do que os esbirros petistas possam arrotar ou cuspir, os céus, que se cobriram de amarelo ao som de panelaços já anunciam a queda faz tempo. Essa senhora irresponsável vai sair do governo. A lei não se importa se ela é honesta ou parece honesta. Ainda bem.



  

terça-feira, 12 de abril de 2016

Onde você estava em 29 de setembro de 1992?

  A hora vem chegando, e a história vai se repetir, não como farsa, nem como tragédia. Antes de respirar fundo e encarar o futuro, melhor apascentar a alma e buscar energias no passado. Nossos filhos nos perguntarão onde estávamos em 17 de abril de 2016. Estudarão nos livros de história, que se depender de nós contarão a verdade. Se depender de quem escreve estes livros hoje, contarão que foi um golpe.
  Este post é muito pessoal. Permitam-me que o seja. A história se move a partir das motivações das pessoas. Da soma de individualidades que ascende a chama do imponderável, do incontrolável que leva à situações de ruptura e faz uma sociedade saltar em evolução. Vivemos uma era assim, e por isso ela é histórica. Foi fundamentalmente a manifestação da vontade de cada um que fez com que as coisas chegassem até aqui desta forma. E, cismando sozinho agora de noite, me reportei a setembro de 1992. Voltei a Ribeirão Preto, onde morava.
  Tenho guardada até hoje a camiseta que usava nas manifestações. Trazia na frente a frase "Eu chafurdo" e atrás "E elles emporcalham." E mais em baixo a assinatura "Sindicato do Golpe". Collor havia dito que se formara um Sindicato do Golpe, organizado para derrubá-lo utilizando-se de procedimentos inconstitucionais. Ele se referia aos opositores como "porcos que chafurdam na lama". Daí a ironia da camiseta. Lembro que um mês antes ele conclamou os brasileiros a saírem às ruas de verde-amarelo. O retumbante protesto contrário veio com todos trajando preto. As cores nacionais só apareceram pintadas com guache em nossos rostos.
  Depois veio a CPI. E o clima começou, na minha visão de adolescente de 17 anos, a ficar meio histérico. Fui ficando mais esquisito com tudo aquilo. Descobrimos que Collor pegou dinheiro da campanha, "lavou" no Uruguai e repatriou no Brasil. Descobrimos que ele comprou um Fiat Elba e reformou sua casa em Brasília com dinheiro sujo. Descobrimos que ele roubou da LBA, a Legião Brasileira de Assistência, depois extinta. Mas eu achava que estava virando festa.
  Não havia como pesquisar a não ser por vias de livros, que não traziam muito sobre o que seria o raio do Impeachment. Professores do cursinho diziam que era um momento ímpar, que estávamos com a história nas mãos, que seria mais lindo que as Diretas Já. Mas o clima era mais de festa do que de reflexão, as frases gritadas eram meio sem nexo, como "Pê Cêêêê, Pê Cêêê, vai pra cadeia e leva o Collor com você!". Já se sabia que o processo era mais político e não criminal, que Collor seria quando muito apeado da presidência, mas ainda não preso. Aquela frase de efeito fazia pouco sentido. O grito mais legal mesmo era, "Ê, Fernandinho, vê se te emenda! Já sabem do teu furo, nêgo, no imposto de renda!", emulando Raul, morto três anos antes.
  Um só professor do COC, onde eu estudava para tentar passar em medicina, se posicionou contra o impeachment. Dava aula de gramática. Lembro que fui falar com ele no intervalo da aula. Da longa conversa, me lembro dele me dizer que nada daquilo adiantaria. Que Collor só estava sendo enxotado porque brigara com o congresso, e que o grande problema do país ainda ficaria sem solução, que seria a corrupção envolvendo campanhas eleitorais. Eu era um menino que só havia presenciado uma campanha para presidente. Mal sabia do que aquele senhor falava.
  Uma semana antes da votação, fui com minha camiseta de sempre para a Praça XV. Meus colegas de pensão foram junto. Em meio à balbúrdia, vi um deputado estadual que tinha base eleitoral na cidade tomar o microfone do carro de som. Antonio Palocci, já candidato a prefeito, foi ovacionado inclusive por mim. Foi a primeira e última vez que tratei um político como astro de rock. A praça começou a ficar perigosamente cheia, pelo menos na minha modesta avaliação. Usei de parâmetro o fato dos garçons do Pinguim baixarem as portas do bar. Avisei o pessoal que ia voltar para a pensão. Fui andando e com a cabeça fervendo. Entrei numa padaria para lavar o rosto e tirar o verde-amarelo. O impedimento de Collor me parecia favas contadas e eu precisava estudar matemática.
  No dia 29 de setembro decidi que não iria para a praça. O clima de festa causou implicância naquele adolescente, cujo mau-humor só pioraria vida afora. Fiquei estudando na pensão. Pelo meio da tarde lembrei ao meu colega de quarto: "Vai começar". Pegamos a relação dos deputados divulgada pela Folha, que trazia quadradinhos em branco, formado colunas de "a favor" e "contra" do lado de cada nome. Tínhamos uma televisãozinha, dessas de pesca, de cinco polegadas, onde a imagem saía em preto-e-branco.
  A sessão começou e deu para ver que seria lavada. A cada voto pelo impeachment soltávamos um "êê", ou um "yes!", e cada deputado que votava contra merecia de nós um apupo como "vendido" ou mesmo um palavrão. Até que ficou por um. Praticamente o plenário todo, de pé, com o indicador em riste. O presidente da sessão, Ibsen Pinheiro, chamou o deputado Paulo Romano. A televisão mostrava que ele era do PFL de Minas. "Vai ser um mineiro! Vai ser um mineiro!", meu colega de quarto me chacoalhava pelos ombros. Até que Romano disse algo como "Por Minas, meu voto é sim!" Pulamos abraçados feito dois torcedores, ouvindo os berros do Congresso e o alarido das ruas. Cantamos o hino nacional. Dois vestibulandos num quarto de pensão. Dois cidadãos brasileiros orgulhosos de seu país. Ouvimos fogos nas ruas. Paramos de preencher o gabarito do jornal. Ficamos sentados em silêncio mais um tempo.
  Até que meu colega de quarto me trouxe à Terra: "Michel, química orgânica!" Fingi não ouvir. Ele julgou por bem dar por encerrado nosso dever cívico, me chamando do apelido que eu odiava: "Batatinha, desliga isso aí. Química orgânica, vamos!" Ajudar a mudar um país não dava pontos no vestibular.
  Abri a apostila de alma lavada.

domingo, 3 de abril de 2016

Submisso Tribunal Federal

"As convicções são cárceres. Mais inimigas da verdade que a própria mentira."
F. Nietzsche


  Há momentos em que eu olho para os ministros do Supremo e penso que, quando atuam se esquecendo de que são um dos pilares da democracia, eles só podem estar cegos por excesso de convicção. Não, o STF não é a última trincheira, como quis definir Marco Aurélio. Aliás nem trincheira deveria ser, pelo mister de serenidade e distanciamento exigidos de seus ministros. Mas é um baluarte. Como o é o Executivo, ocupado por uma moribunda moral, como o é o Legislativo, cujas câmaras são presididas por rematados ladravazes, e eis que temos o Judiciário presidido por uma nulidade como Ricardo Levandowski. Se o Executivo e o Legislativo são sempre a nossa cara e bem merecemos toda a lama que produzem, o Judiciário não deveria ser. Pelo menos não tão abertamente. A divina providência e a regra estulta da aposentadoria compulsória brindaram o PT com a chance única na história republicana de poder colocar no Supremo gente de sua confiança. A fatura chegou com força agora, cobrada por Lula. Imaginávamos que os doutos jurisconsultos fossem se fazer de rogados. Até agora se fizeram de covardes mesmo, com raros momentos de independência genuína. 
  Nossa Suprema Corte saiu-se razoavelmente do episódio do Mensalão, onde foi colocada no epicentro dos acontecimentos. Condenou inequivocadamente quem tinha que condenar e inaugurou um novo capítulo em nossa história, no que merece mesmo um reconhecimento. Aquilo tudo era muito novo, havia clamor popular - igual pressão petista - havia a premência do tempo. Porém havia Ayres Brito, que deu o rumo inicial ao julgamento, tendo que sair no meio por conta da aposentadoria forçada. Havia Joaquim Barbosa, o relator do processo, a quem se deve grande parte do resultado. Mas... 
  Mas havia Levandowski, o revisor do processo que nos ensinou a nós leigos o significado da palavra "chicana" em juridiquês. Havia Toffoli, que já disse agora que o impeachment não é golpe ("O que deu neste menino?"), mas toda atenção com ele é pouca. Havia Teori Zavascki, que entrou do meio pro fim. O bom senso pedia que ele se abstivesse do voto por entrar com o bonde andando, mas quase foi decisivo para ajudar a inocentar a corja petista do óbvio crime de formação de quadrilha. Zavascki não perde a chance de nos avisar a que veio. E vai continuar não perdendo.
  Não havia Luis Barroso, que chegou depois. Aaaah, Luis Barroso... Ele já disse que o julgamento do mensalão foi um "ponto fora da curva". Até foi mesmo, mas ele se referia às penas aplicadas. Achou que o STF foi muito rígido. Ele protagonizou o voto mais constrangedor visto naquele tribunal, quando da apreciação do rito do impeachment no fim do ano passado. Ao ler em voz alta parte do regimento interno da Câmara dos Deputados, omitiu propositadamente um trecho que inviabilizaria seu voto. A palhaçada foi filmada... Não bastasse isso, o PT convocou o advogado Ricardo Lodi para defender Dilma na comissão do impeachment. Ele começou dizendo que não houve as pedaladas, mas um erro na execução do orçamento. Durante sua explanação deu para antever que ele sugeriria que houve pedaladas "culposas" e não "dolosas". Que tudo foi sem intenção, tadinha da Dilma, mas que tudo já estaria corrigido. Porém ele tomou coragem e encerrou dizendo que não houve crime nenhum mesmo. Seria só pitoresco, mas Ricardo Lodi é sócio no escritório de advocacia onde... Luís Barroso atuou até ser nomeado para o Supremo. Seu posicionamento, espremendo as leis para deixá-las favoráveis ao governo pode ser um prenúncio do comportamento de Barroso e companhia.
  E não havia Lula. Tá bom, também não havia Sérgio Moro e os bravos promotores do Paraná. Mas agora há Lula. Mais que nunca, os Ministros do STF estão entre fazer justiça e beijar a mão de seu nhô-nhô. Sinceramente, a impressão é a de que eles se dobrarão às evidências escorchantes para condená-lo. Já têm noção delas. Mas vão vender caro. Não por suas convicções, longe disso. O caso aqui é o compadrio, a gratidão pela boquinha recebida, a admiração subdesenvolvida ao caudilho. Um país onde alguns dos maiores inimigos da Verdade estão na Suprema Corte está fadado a ser um país de mentira