segunda-feira, 2 de junho de 2014

O Fenômeno e o General Romano

  Sinceramente nem vem ao caso as motivações políticas de Ronaldo. Basta que tenha razão. Como discordar dele? As obras para a Copa estão prontas? Foram feitas com dinheiro privado, conforme Lula nos assegurou? Ele irá nadando para a África, conforme nos prometeu, caso a Copa fosse um malogro? Aliás, onde se alugam jumentos para que os torcedores possam chegar aos locais dos jogos? Ficaremos orgulhosos ou envergonhados com este evento?
  Ao que parece, Ronaldo apenas deixou de fingir que não enxergava. Foi premido pelo ronco das ruas. Melhor dizendo, pelo silêncio das ruas quando o assunto é empolgação com a Copa. A pátria não parece mais ser a de chuteiras. Calça as sandálias da sensatez, na qual chegou por puro desalento - mas este não é quase sempre o caminho para a sensatez?
  Na empolgação do mandato que superava a crise do Mensalão, o lulopetismo acenava com o "legado" da Copa, na forma de melhorias de infraestrutura urbana, sem contar o lucro de vários setores. Já se tem como certo que quanto ao setor de turismo, só vai ter lucro o receptivo. A indústria já prevê prejuízo e os serviços não ganharão como esperavam. A infraestrutura... bem, é "babaquice", como candidamente nos lembrou Lula.
 
  Uma das acepções da palavra "legado" vem da Roma antiga: referia-se a um posto militar de alta patente, equivalente a um general que na época comandava uma legião (legatus legionis). Certamente é uma previsão otimista, mas esta Copa talvez nos deixe este tipo de "legado". Pode ser que os brasileiros estejam colocando um torneio de futebol em seu devido lugar, sem que os grandes problemas e questões na nação fiquem em suspenso até que a bola pare.
  Espaço para anarquia vai sempre haver, mesmo que travestida de civilidade. Mas para isso temos a polícia, com legitimidade para garantir a todos, TODOS, os brasileiros seus direitos. Tanto o de se manifestar, quanto o de não se manifestar. Sem falar nos constitucionais direito à propriedade e o de ir e vir. Ainda que para isso tenha que lançar mão da firmeza e até, vá lá, da violência, mostrando a força das nossas instituições.
  Mas de um jeito ou de outro uma parte substancial da população que não se deixa levar pelo ufanismo e patriotada aproveita agora os holofotes do mundo para selar sua insatisfação. Pode ser que os petistas, que tiram proveito político até dos velórios de suas mães, apontem tal efeito como uma "prova do aumento da consciência crítica das massas" e estaria assim chancelada a "política para a educação" do PT.
  Se tal postura crítica representar o legado, ou seja, o norte, o "general" de nossas ações enquanto cidadãos, é possível afirmar que a Copa valeu. Anda bem.
 
  Até porque, mesmo depois de nos livrarmos da caixirola - aquele chocalho de capoeira que Carlinhos Brown tentou nos empurrar, outro legado sempre dirá muito destes tempos atuais: os nomes dos elefantes brancos erguidos em desertos futebolísticos, que de tão vexaminosos nem mereceram as tradicionais alcunhas. A eles não foi conferida a honra nem do clássico "Estádio", tampouco do brasileiríssimo "Campo". Sobrou-lhes o pretensioso e circense "Arena".

 

Bendito calor

 
"Assim, porque és morno, e não és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca".

Apocalipse 3:16

  Várias lições nos deu o ministro Joaquim Barbosa, que se aposentou do Supremo Tribunal Federal. A História vai registrar um tempo em que figurões da República foram presos por corrupção, a partir de um julgamento conduzido estritamente dentro dos ritos legais. Uma tarefa imensa que se incumbiu a Suprema Corte de uma democracia imatura. Pode ser que o país ainda não tenha se dado conta da dimensão do ocorrido, seja pela crônica falta de educação, seja pela igualmente crônica inépcia institucional que continua nos assolando malgrado o justo enjaulamento de Dirceu e comparsas.

  Há um ano várias cidades do país se sacudiam com os protestos de Junho. Nenhum nome colou para designar aquele período, o que nem é surpreendente. As lideranças da época já foram esquecidas, como os tais do Movimento Passe Livre que certamente se encontra adormecido em uma gaveta partidária pronto a ser colocado em prática quando a baderna interessar a mais uma manobra. Já nos esquecemos até do nome daquele moço com lábios bem proeminentes, líder de algum outro "coletivo". Da mesma forma, em breve nos esqueceremos deste menino, filho de um professor titular de medicina da USP, que lidera um bando que se diz sem-teto. Celebridades dignas de um BBB, pretensamente com mais conteúdo porém igualmente prenhes de espuma. 

  Por todo o país sobrou a grita contra a corrupção, mas pode ser que mesmo o manifestante mais empedernido sequer tenha cogitado escrever "mensaleiros na cadeia" em uma cartolina. O ronco das ruas foi "contra tudo de ruim que está aí desde o Brasil-colônia" e cá pra nós contra os vinte centavos de aumento no transporte público - sem contar a apelação fácil para os hospitais e escolas padrão-Fifa.

  O STF, ao contrário do que delirou Celso de Melo em seu voto aceitando os embargos infringentes, não foi diretamente pressionado. A postura de Joaquim Barbosa se anunciou desde que começou a dar indícios do que seria seu relatório, mesmo que tenha sido cobrado do contrário com as inacreditáveis alusões ao dever de gratidão por conta de sua nomeação pelo sinhozinho Lula.

  O por hora aposentado Joaquim Barbosa merece ser lembrado pela "ira santa e saúde civil". Por ter se entregue ao extremo calor revolucionário quando até poderia ter se deixado levar pela temperatura morna de um tribunal superior, confundida com temperança.

  Sua principal lição foi ter-nos mostrado que revoluções podem ser feitas não derrubando instituições, mas as fortalecendo. Que grandes paradigmas podem ser soterrados com as armas da democracia e do estado de direito. Que faz bem a uma sociedade quando alguém tem a coragem de abalar estruturas seculares registrando de cara limpa suas ações nos autos, e não cobrindo o rosto com uma máscara ninja. Nesta defesa implacável e na denúncia do cinismo regimental de alguns juízes vendidos residiu o calor de sua atuação - noves fora seu temperamento mercurial.

  Joaquim Barbosa sai do Supremo com a serenidade que só a força dos justos confere. Não precisa se intitular guerreiro, nem gritar palavras de ordem, tampouco cerrar e erguer os punhos numa desesperada caricatura.

  De erguidas bastam suas convicções, sua consciência e sua cabeça.