terça-feira, 12 de abril de 2016

Onde você estava em 29 de setembro de 1992?

  A hora vem chegando, e a história vai se repetir, não como farsa, nem como tragédia. Antes de respirar fundo e encarar o futuro, melhor apascentar a alma e buscar energias no passado. Nossos filhos nos perguntarão onde estávamos em 17 de abril de 2016. Estudarão nos livros de história, que se depender de nós contarão a verdade. Se depender de quem escreve estes livros hoje, contarão que foi um golpe.
  Este post é muito pessoal. Permitam-me que o seja. A história se move a partir das motivações das pessoas. Da soma de individualidades que ascende a chama do imponderável, do incontrolável que leva à situações de ruptura e faz uma sociedade saltar em evolução. Vivemos uma era assim, e por isso ela é histórica. Foi fundamentalmente a manifestação da vontade de cada um que fez com que as coisas chegassem até aqui desta forma. E, cismando sozinho agora de noite, me reportei a setembro de 1992. Voltei a Ribeirão Preto, onde morava.
  Tenho guardada até hoje a camiseta que usava nas manifestações. Trazia na frente a frase "Eu chafurdo" e atrás "E elles emporcalham." E mais em baixo a assinatura "Sindicato do Golpe". Collor havia dito que se formara um Sindicato do Golpe, organizado para derrubá-lo utilizando-se de procedimentos inconstitucionais. Ele se referia aos opositores como "porcos que chafurdam na lama". Daí a ironia da camiseta. Lembro que um mês antes ele conclamou os brasileiros a saírem às ruas de verde-amarelo. O retumbante protesto contrário veio com todos trajando preto. As cores nacionais só apareceram pintadas com guache em nossos rostos.
  Depois veio a CPI. E o clima começou, na minha visão de adolescente de 17 anos, a ficar meio histérico. Fui ficando mais esquisito com tudo aquilo. Descobrimos que Collor pegou dinheiro da campanha, "lavou" no Uruguai e repatriou no Brasil. Descobrimos que ele comprou um Fiat Elba e reformou sua casa em Brasília com dinheiro sujo. Descobrimos que ele roubou da LBA, a Legião Brasileira de Assistência, depois extinta. Mas eu achava que estava virando festa.
  Não havia como pesquisar a não ser por vias de livros, que não traziam muito sobre o que seria o raio do Impeachment. Professores do cursinho diziam que era um momento ímpar, que estávamos com a história nas mãos, que seria mais lindo que as Diretas Já. Mas o clima era mais de festa do que de reflexão, as frases gritadas eram meio sem nexo, como "Pê Cêêêê, Pê Cêêê, vai pra cadeia e leva o Collor com você!". Já se sabia que o processo era mais político e não criminal, que Collor seria quando muito apeado da presidência, mas ainda não preso. Aquela frase de efeito fazia pouco sentido. O grito mais legal mesmo era, "Ê, Fernandinho, vê se te emenda! Já sabem do teu furo, nêgo, no imposto de renda!", emulando Raul, morto três anos antes.
  Um só professor do COC, onde eu estudava para tentar passar em medicina, se posicionou contra o impeachment. Dava aula de gramática. Lembro que fui falar com ele no intervalo da aula. Da longa conversa, me lembro dele me dizer que nada daquilo adiantaria. Que Collor só estava sendo enxotado porque brigara com o congresso, e que o grande problema do país ainda ficaria sem solução, que seria a corrupção envolvendo campanhas eleitorais. Eu era um menino que só havia presenciado uma campanha para presidente. Mal sabia do que aquele senhor falava.
  Uma semana antes da votação, fui com minha camiseta de sempre para a Praça XV. Meus colegas de pensão foram junto. Em meio à balbúrdia, vi um deputado estadual que tinha base eleitoral na cidade tomar o microfone do carro de som. Antonio Palocci, já candidato a prefeito, foi ovacionado inclusive por mim. Foi a primeira e última vez que tratei um político como astro de rock. A praça começou a ficar perigosamente cheia, pelo menos na minha modesta avaliação. Usei de parâmetro o fato dos garçons do Pinguim baixarem as portas do bar. Avisei o pessoal que ia voltar para a pensão. Fui andando e com a cabeça fervendo. Entrei numa padaria para lavar o rosto e tirar o verde-amarelo. O impedimento de Collor me parecia favas contadas e eu precisava estudar matemática.
  No dia 29 de setembro decidi que não iria para a praça. O clima de festa causou implicância naquele adolescente, cujo mau-humor só pioraria vida afora. Fiquei estudando na pensão. Pelo meio da tarde lembrei ao meu colega de quarto: "Vai começar". Pegamos a relação dos deputados divulgada pela Folha, que trazia quadradinhos em branco, formado colunas de "a favor" e "contra" do lado de cada nome. Tínhamos uma televisãozinha, dessas de pesca, de cinco polegadas, onde a imagem saía em preto-e-branco.
  A sessão começou e deu para ver que seria lavada. A cada voto pelo impeachment soltávamos um "êê", ou um "yes!", e cada deputado que votava contra merecia de nós um apupo como "vendido" ou mesmo um palavrão. Até que ficou por um. Praticamente o plenário todo, de pé, com o indicador em riste. O presidente da sessão, Ibsen Pinheiro, chamou o deputado Paulo Romano. A televisão mostrava que ele era do PFL de Minas. "Vai ser um mineiro! Vai ser um mineiro!", meu colega de quarto me chacoalhava pelos ombros. Até que Romano disse algo como "Por Minas, meu voto é sim!" Pulamos abraçados feito dois torcedores, ouvindo os berros do Congresso e o alarido das ruas. Cantamos o hino nacional. Dois vestibulandos num quarto de pensão. Dois cidadãos brasileiros orgulhosos de seu país. Ouvimos fogos nas ruas. Paramos de preencher o gabarito do jornal. Ficamos sentados em silêncio mais um tempo.
  Até que meu colega de quarto me trouxe à Terra: "Michel, química orgânica!" Fingi não ouvir. Ele julgou por bem dar por encerrado nosso dever cívico, me chamando do apelido que eu odiava: "Batatinha, desliga isso aí. Química orgânica, vamos!" Ajudar a mudar um país não dava pontos no vestibular.
  Abri a apostila de alma lavada.

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