segunda-feira, 13 de agosto de 2012

"Vendo a liberdade como Judas vendeu Jesus."

O autor da frase do título era um advogado provisionado, em tempos de uma São Paulo ainda com foros de cidadezinha. Luís Gama frequentou como ouvinte o curso de direito no Largo de São Francisco e saiu antes da conclusão. Naqueles tempos, podia-se atuar como advogado em primeira instância mesmo sem concluir a formação, bastando autorização da equivalente à OAB da época. Eram os chamados "provisionados" ou "rábulas", típicos de um tempo de país em formação, que dispunha de poucos profissionais de nível superior.
Pois bem. Luís Gama era negro. Viveu na época do Segundo Reinado e, para resumir, foi vendido por seu pai como escravo. Conseguiu a liberdade, alfabetizou-se no final da adolescência e se tornou um dos maiores defensores de outros negros, encontrando caminhos legais de retirá-los da condição de escravos. Vale a pena conferir sua história.

Gama foi até onde sua inteligência, perseverança e talentos permitiram. Usou destas armas para sair de uma condição de vendido pelo pai para a de advogado de respeito. Não precisou se valer de cotas.
Quase dois séculos depois, e o Brasil ainda não aprendeu a lidar com a escravidão. A atuação de Luís Gama só era possível porque fomos criando um arcabouço legal que nos permitiu singularmente abolir a escravidão aos poucos. A Lei Áurea, que tornaria o trabalho de Gama obsoleto, só foi promulgada sete anos após sua morte.

O regime de cotas raciais atesta a culpa que temos, ou que pelo menos deveríamos ter, pela escravidão. Vagas seriam reservadas para os que se declaram negros em universidades e postos de trabalho, e assim estaríamos curando uma chaga histórica.
A primeira distorção seria o que fazer com os estudantes brancos pobres, colegas dos negros nas salas de aula do ensino público. Mas ao que parece, já foi resolvida: foi aprovada a lei que garante 50% das vagas para oriundos de escolas públicas.
O tempo que se gasta pensando em soluções como essa é maior com o gasto em planejamento de melhorias na educação. Mas dizer isso é redundante. Há outros aspectos envolvidos, e um deles foi desnudado com a notícia de que o ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica) e o IME (Instituto Militar de Engenharia) simplesmente não darão bola para nenhum tipo de cota. E o Governo Federal disse que... tudo bem...

Já li que o ITA pode tomar tal postura porque se trata de uma instituição historicamente meritocrata. Uai, e as Universidades Federais não são? Outros justificam que o ITA faz parte da Aeronáutica e não do Ministério da Educação, e a lei alcança apenas os vinculados ao MEC. Ah, tá...
De duas as duas: o Governo acha mesmo que esse troço de cota contribui para baixar o nível dos cursos, e no fundo tem vergonha de ter sancionado a lei, já que sancionou por medo da grita dos patrulheiros.

O que incomoda neste tipo de lei, é a distorção do conceito de justiça. Se "justiça social" fosse algo justo, se chamaria apenas "justiça". Deixar um branco que é mais competente (porque foi melhor preparado) de fora da universidade em detrimento de um negro, e alegar reparação por danos da escravidão não é justiça, é acerto de contas.
Limitar as chances de acesso à faculdade de um jovem cujo pai de classe média perdeu noites de sono para saber como pagaria a escola particular não redime as noites de sono perdidas pelo pai mais pobre por não conseguir pagar escola para o filho.
Dizer que vai levar muito tempo para que a escola pública fique decente, e até lá que se tenha as cotas, equivale a apoiar um julgamento sumário.
Quando alguém já entra com mais chance num vestibular porque se declarou negro, e não porque aproveitou a chance de estudar numa boa escola para se preparar melhor, o que se tem aí não é justiça, é privilégio.

A justiça tem que ser oferecida a todos, sem distinção nem de caráter. Assim como a liberdade aos escravos, como bem lembrou Luís Gama. A justiça não tem que ser simpática, boazinha, politicamente correta, ou, como queiram, "social".
A justiça tem que ser apenas justa.

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